Para iniciar a vida desse blog eu gostaria de expor aqui um conceito que eu admito ter certo vício em empregar no dia-a-dia. Admito também que de certa forma ele me torna meio cético, e admito ainda que isso eventualmente me faz achar que as pessoas parecem até meio tolas quando discutem sobre qualquer coisa "séria" por aí. De certa forma, o uso excessivo desse conceito foi até o que motivou a começar o blog, então justiça seja feita, aqui vamos com o post inaugural.
Para ser franco, me deparei a primeira vez com o conceito de desfecho substituto na faculdade de medicina, numa discussão qualquer sobre um artigo qualquer sobre a eficácia de um medicamento qualquer. Chato. Porém, mais ou menos na mesma época, eu li um livro que só mais tarde eu iria perceber que mudou a minha forma de pensar. E só mais tarde, anos mais tarde, é que eu percebi que o que estava escrito ali tinha alguma coisa a ver com essa história de desfecho substituto, e aí BUM!... a magia aconteceu. O livro ao qual eu me refiro é O Andar do Bêbado, de Leonard Mlodinow, sugiro fortemente que você leia. Já o artigo eu nem me lembro mais, e não importa mesmo.
Falando um pouco sobre as duas coisas, eu digo que o livro é basicamente sobre como o acaso afeta nossas vidas. Ele discute, entre outras coisas, o fato de que nós, apesar de entendermos o conceito de aleatoriedade, não conseguimos de fato entender um processo aleatório. Não conseguimos reconhecer um, nem conseguimos gerar um de forma espontânea. No fim das contas, o que ele meio que quer dizer é que nós tomamos decisões na vida baseados em informações que na verdade são frutos de processos aleatórios, e que por isso não têm de fato qualquer significado relevante. Se você comprou na vida duas geladeiras da Brastemp, e elas apresentaram problemas cedo, ainda que uma tenha sido comprada dez anos antes da outra, você já vai logo dizendo que não compra mais Brastemp, mesmo que na verdade existam milhões de geladeiras compradas por milhões de pessoas, e que apresentam defeitos de forma aleatória! Ou seja, seria realmente muito muito improvável que não existisse um afortunado no mundo (no caso aqui, você) que tivesse a sorte grande de ter visto duas geladeiras Brastemp dando defeito. E mesmo assim você tomou uma decisão baseado nisso.
Conta-se também que Steve Jobs teve problemas inicialmente com o iPod Shuffle (onde as músicas são tocadas aleatoriamente) porque as pessoas reclamavam que às vezes as músicas ou artistas repetiam, o que é perfeitamente comum em séries aleatórias. A solução foi então tornar o processo menos aleatório, dificultando as repetições, para que as pessoas o achassem mais aleatório.
Por que estou dando esses exemplos? Basicamente para mostrar que nós não entendemos e tiramos conclusões erradas de certos processos que na verdade são aleatórios, como os defeitos em geladeiras e a lista de músicas do iPod Shuffle.
Mas onde raios entra o desfecho substituto? Bom, de forma muito simples, esse conceito é utilizado em pesquisas onde, por exemplo, você não pode avaliar de forma direta o que você realmente quer avaliar. Explicando: suponha que você inventou um remédio novo que diminui o colesterol. É conhecimento geral que colesterol pode dar (veja bem, PODE dar) problema de coração, e que as pessoas podem morrer de problema de coração. Na verdade, o que você quer saber é se o seu remédio novo impede que as pessoas morram de problema de coração, certo? Mas você não pode fazer um teste no qual você espera as pessoas morrerem para ter seus resultados! Então você faz um teste pra ver se o remédio realmente diminui o colesterol, e SUPÕE que com isso elas morrerão menos do coração anos mais tarde. A diminuição do colesterol seria o desfecho substituto, entendeu?
Mas isso é justo? Claro que é. Desde que se entenda que isso é apenas uma suposição. Infelizmente as indústrias farmacêuticas muitas vezes (quase todas) fazem parecer que o desfecho substituto é a verdade absoluta, e os médicos infelizmente acreditam cegamente. Já aconteceram casos de remédios badalados que com os anos no mercado mostraram efeito contrário (pessoas morreram ainda mais, acredite), e foram proibidos. Mas por que isso aconteceu? Porque o corpo humano não é uma máquina previsível, existem milhões de fatores que influenciam no seu bom funcionamento, e as coisas não acontecem de forma tão linear (seria aleatório?), como na pesquisa onde colesterol causa problema de coração que causa morte.
Tá, e cadê a magia então?
Com o tempo eu fui percebendo que somos bombardeados por todos os lados com toneladas de fatos, e que as pessoas tiram conclusões irrefutáveis com base neles, usando aquela história de "contra fatos não há argumentos". Na verdade há argumento. Fato é fato, é verdade, mas será que esse fato significa exatamente o que estão dizendo que ele significa? O que me pergunto é: será que esse fato não é na verdade um processo aleatório, ou então parte de um processo muito mais complexo? Será que essa conclusão não seria resultado de uma suposição, e o fato é na verdade uma espécie de desfecho substituto?
Eu poderia falar dezenas de exemplos onde foram tiradas conclusões precipitadas porque "contra fatos não há argumentos", mas o que mais tem me preocupado é que no momento político atual isso vem sendo utilizado perigosamente. Por exemplo, pedir impeachment da presidente porque falta água na sua casa pra mim é reduzir um processo enormemente complexo numa relação linear demais (a presidente é uma bosta, por isso falta água). A falta d'água seria um desfecho substituto numa análise que pode, veja bem, PODE mostrar que o governo federal é incompetente, mas nessa relação, assim como no corpo humano, entram milhões de outras variáveis (outras esferas de governo, iniciativa privada, questões econômicas, e por aí vai).
Por isso eu vejo toda essa discussão com muito cuidado. Pra mim corrupção é corrupção, deve ser punida se assim for comprovado, e ponto final. Mas as discussões do poder de compra do salário mínimo, preço da gasolina, câmbio do dólar, bolsa família, preço dos imóveis, ameaça comunista, privatizações, dívida externa etc etc etc., só para mostrar que tal político é melhor ou pior, são recheadas de fatos que simplificam processos MUITO complicados. As pessoas se deixam levar pela verdade absoluta desses fatos, mas talvez eles sejam só desfechos substitutos que apenas SUPÕEM alguma coisa, porque a verdadeira análise é muito mais complexa.
Isso é justo? Já disse que é, desde que saibamos que pode ser apenas suposição. Análises de processos multifatoriais exigem múltiplos ângulos de observação. Todas as coisas que envolvem conjuntos de pessoas são complexas, e a ideia do blog nasceu na tentativa de entender (pretensiosamente) tudo que se passa.
Há muita gente tirando conclusões irrefutáveis de fatos aleatórios e de desfechos substitutos. Chega a ser engraçado essa inocência. Por isso, analise bem as coisas. Não queira ser um deles.